Desarmamentos

Que frio! O vento uiva lá fora. Luzes se apagam repentinamente. Breu toma conta da cidade.

 

Andreia Donadon Leal- Mestre em Literatura e Doutoranda em Educação.

 

Vi um gato branco andarilhar pelo muro. Acrobata de primeira, sobe, desce, escala, pula de um espaço para o outro. Voos rasantes-sintonizados. Parece pássaro, mas não é pássaro, é felino. Não sei se sente frio, é resistente às estações do ano, deduzo. Eu não aguento ficar sem agasalho, nem dentro nem fora de casa.

Ruas desertas. Um carro ou outro perambula pelas travessas do bairro. Vozes e gritos da casa contígua. Retumbam funk, sertanejo, modas antigas numa nova roupagem. Já tinha visto no celular um vídeo com essa música que me agrada os ouvidos, mas me espantaram (tirando minha chatice e tradicionalismo!) as performances de corpos que se mexem em movimentos sincronizados e bregas. Calças ou bermudas acima da cintura, cara de bobo, dedos levantados … Revi e reouvi a música, para experenciar a sensação de dançar desse jeito.

Fenômeno: despir-se do condicionamento da formalidade e rigidez. Carpinteiro, que sem eira nem beira, conquista a princesa mais cobiçada do mundo. Devoto de Santo Antônio, suponho. Santo Antônio é poderoso, para os enlaces amorosos ou do coração. O meu tem dono há duas décadas. Coloquei o Santo de cabeça pra baixo, fiz novena atrás de novena, seguindo a tradição da família… Estas estórias mexem comigo.

Uma lágrima furtiva saltou dos meus olhos. Quanta gente morreu hoje? Não assisti ao jornal. Dei-me um tempo. Que frio brabo. Sem luz; não me atrevo a tomar banho frio. Esquento água no fogão, banho de balde é bom. Luz de vela é bom. Ficar duas horas com todos os aparelhos desligados é surreal de bom.

Ouço gritos de “a luz apagou “. “Dá à luz.” “Inferno”. “Estou de quarentena e agora sem luz?” Palavrões ecoam pelas ruas. Ninguém vê ninguém. Será? Ninguém, na cabeça do autor do palavrão, saberá a identidade do meliante. Que escuridão-friorenta impregnada de palavrões!

O gato se espantou com os gritos. Fugiu feito bala. Ri, sorri, lembrando-me da música que ficou na minha memória, a canção do carpinteiro, que mexe e remexe com o desarmamento de minha rigidez. Música, independentemente do estilo, toca a sensibilidade humana, para o acolhimento ou rejeição. Não avancei na performance, não levo jeito, sou travada para dançar desde que nasci. O lance da performance, nem sei quando usei o vocábulo LANCE em minhas falas, acho que foi na adolescência. Sem saber o que era performance, eu fazia performance.

Que lance é esse de ficar no escuro? Desarmamento da rigidez! Que parada é essa de se desligar do mundo das máquinas? Desarmamento da rigidez! Que fenômeno é esse de ouvir música brega e sentir vontade de dançar feito um bobo? Desarmamento de minha timidez! Não sou músico nem performance, sou apenas uma alma aquecida e alegrada pela música brega, pelo frio cortante e pela repentina escuridão que me tirou da armadura.

O gato retornou. Uma bola de pelos brancos na escuridão. Vesti o roupão, cobri-me com o edredom, deixei meus olhos descansarem na escuridão. Quando a luz chegar, vou ouvir a música. Fez bem para meu espírito introspectivo despir-me do condicionamento formal. Faz bem, tenho certeza.

Acho que o gato concordou comigo. Parou, olhou-me por alguns segundos, deu meia volta, e saltou na escuridão.